A relação das crianças com a Natureza como método de aprendizado na Rede Municipal de Ensino de Benevides
No território das crianças qualquer espaço livre com infinitas possibilidades de brincar pode potencializar habilidades e expandir o desenvolvimento integral das crianças.
Redação
No território das crianças qualquer espaço livre com infinitas possibilidades de brincar pode potencializar habilidades e expandir o desenvolvimento integral das crianças.
A Secretaria Municipal de Educação (SEMED), em parceria com o Centro de Formação e Pesquisa de Benevides, recebeu a equipe do Coletivo Taboa, por meio do projeto Natureza das Infâncias, com o apoio do Instituto Alana pelo programa Criança e Natureza, e Urban95, para trocar vivências, pesquisas e aprendizados com professoras e professores das Unidades Infantis da Rede Municipal, sobre como as crianças e até mesmo os adultos podem explorar e criar brinquedos com elementos da natureza, que podem ser coletados nos quintais, como múltiplas possibilidades integrais de aprendizado.
O Coletivo Taboa é composto por educadoras, artistas, pesquisadoras das infâncias, da relação que elas têm com a natureza e com elas mesmas. O grupo percorre pelo Brasil com o propósito de criar percursos orgânicos do brincar, vivências práticas e reflexivas sobre a infância.
O percurso durou pelo menos duas semanas, guiado por Julia Berro e Guilherme Blauth, educadores e pesquisadores das infâncias, resultando em novas perspectivas de aprendizados a partir da observação do comportamento das crianças interagindo com os elementos da natureza, socializando durante 30min sem intervenção das professoras.
A experiência foi feita com crianças de 1 a 4 anos de idade.
A experiência com as professoras
Quando se pensa em um modelo de escola vem a imagem dos alunos em suas carteiras, enquanto o professor ministra a aula, mantendo os olhos fixos nele e na lousa. Mas a sabedoria da criança não cabe em um ambiente restrito, em que o estímulo só acontece quando o professor dita o que ela precisa fazer e aprender. A criança pode ser protagonista no processo da aprendizagem.
Foi assim que em Benevides se iniciou várias rodas de conversa entre os professores das Unidades Infantis para repensar novas estratégias de ensino-aprendizado. Mas antes de se chegar nas crianças, os professores retornaram às próprias raízes, ativando memórias da infância e partilhando saberes, sobretudo o reconhecimento da própria identidade e valorização cultural.
As professoras também dialogaram sobre como se comunicar com as crianças, reconhecendo-as nos espaços.
“Nós sempre trabalhamos direcionando as nossas crianças, então tudo o que eles faziam ou fazem, era direcionado por nós, e as crianças precisam ser protagonistas. Eu só tenho que agradecer por essa experiência que me fez reviver também a minha infância, eu vivi tudo isso, e agora o que eu mais quero é fazer com que as crianças vivam também, tenham boas lembranças e aprendam muito com a natureza, ela tem muito a nos ensinar e as crianças também..”, disse uma professora.
Enquanto os professores trocavam ideias e experiências, havia no centro da roda vários objetos artesanais e diversos elementos naturais da região, como urucum, ouriço de castanha, palhas e folhas de açaí, andiroba, cacau, martelinhos de madeira, massinha de argila, bolachas de madeira, pedaços de miriti, sementes, flores, caixotes, cuias, e outros, para que os professores pudessem interagir com eles.
A professora do CMEI Izaura, Tatiane Pantoja, se abriu para a experiência que despertou nela várias ideias que podem contribuir com o desenvolvimento das crianças.
“Apesar de nós estarmos vivendo em uma escola que tem uma natureza presente que nos dá a possibilidade de trabalhar muitas coisas, nós ainda não tínhamos nos despertado para isso, apesar estar na nossa rotina ocupar os lugares livres, mas Julia e Guilherme vieram nos mostrar o quanto temos muito e várias maneiras diferentes de ensinar”, comentou a professora.
As coletas vieram de mercado público, áreas florestadas e quintais.
Guilherme Blauth, do Coletivo Taboa, conta que ficou surpreso ao ouvir relatos sobre o uso dos recursos naturais como experiências pedagógicas.
“Achei interessante durante o percurso pelos relatos "isso aqui é novo", "isso aqui é novo". Isso pode ser novo na escola, mas esses materiais são muito comuns aqui nessa região. Então esse percurso deu um novo olhar para o tradicional, para o conhecido e o que se pode fazer com tudo isso que se tem aqui”, destacou.
Observando as crianças
Para iniciar a fase de observação das crianças interagindo com os elementos da natureza, pela primeira vez as professoras foram orientadas a apenas observar as crianças brincando no pátio da escola.
O espaço livre, preparado pela equipe do Coletivo Taboa, com várias intencionalidades e estímulos na composição dos elementos naturais, resultou em várias descobertas pelas crianças na hora da experiência.
Ao observar a experiência, a professora Cristiana Sampaio, sentiu medo de deixar as crianças livres, sem intervir no brincar delas. Mas ao longo da experiência conseguiu se conter e observou vários comportamentos interessantes nos seus alunos.
“Eu confesso que senti um pouco de medo nessa experiência. Minha aluna, por exemplo, pegava os elementos da natureza, e depois voltava a chorar. Depois, ela se encontrava novamente no brincar. Uma professora colocou uma bacia com água perto dela, e então chamou a atenção e ela conseguiu brincar, misturando urucum na água, depois misturou vários elementos, pegou uma colher e ficou mexendo. Eu ainda não tinha trabalhado com a água e os elementos assim com as minhas crianças. Um outro aluno ainda não tinha tido contato com a natureza desse jeito, e ele conseguiu interagir, pegou o urucum e ficou se pintando. Então foi uma experiência extraordinária para eles, para nós foi muito gratificante”, relatou.
Apesar de parecer que a experiência do brincar não tem um fundamento no sentido pedagógico, Julia Berro, do Coletivo Taboa, explica que há vários sentidos no brincar como um aprendizado.
“Quando a gente junta os dois – a natureza e a criança - a gente começa a entender que alfabetização, a matemática, geografia, português, está tudo isso dentro desse processo. A gente não precisa falar uma língua distante da realidade das crianças, a gente precisa aprender com as crianças pra conseguir ensinar e aprender junto com elas, vai entender que a natureza é o lugar primordial das Infâncias e o brincar é a sua linguagem”, explica.
A experiência do brincar livre muito além do pedagógico, na escola possibilita às crianças de desenvolverem suas potencialidades, relações, limites, descobertas e a autonomia.
“Um trabalho feito em uma escola, por mais livre que ele seja, no contexto escolar existe uma intencionalidade sempre. Quando a gente prepara o espaço, existem várias intencionalidades, vários desejos. Quando acontece a experiência e a gente está observando as crianças, a gente vai contornando, vai ajudando as crianças a fazer mediação de conflitos, vai dando limite. Então, é muito diferente de quando a criança está brincando sozinha no quintal de sua casa. Na escola, se tem a possibilidade de contornar, uma maneira de fazer que é diferente”, acrescenta Guilherme, do Coletivo Taboa.
As famílias na experiência
Ao buscar as crianças na escola, famílias e seus cuidadores perceberam um movimento diferente do habitual. Observaram os materiais e as crianças envolvidas na experiência. Alguns reagiram com estranheza, outros se encantaram e viram como oportunidade de introduzir novos modos de brincar em casa.
Segundo Julia, colocar em prática as estratégias para aproximar as famílias da escola é fundamental para que haja uma transformação de dentro para fora.
“É importante trazer as famílias para observar. Eu acho que quando a gente convida as famílias para estarem na escola e não ser só um serviço, a gente aproxima também e transforma também a realidade em casa, e não só na escola”, enfatizou.
Foi o que aconteceu com o Rubens Ripardo, pai de duas crianças. Ele conta que esse método operou transformações positivas nos filhos.
“Achei o projeto incrível! A união da escola com a natureza traz descobertas incríveis para a percepção do que há ao redor das crianças. Vejo a prova disso nos meus filhos, Vicente e Cecília, ambos alunos da CMEI Izaura que se divertiram e interagiram de uma maneira que nunca tinha acontecido em casa. Ações como esta provam que a educação dentro da escola não acontece apenas dentro da sala de aula e reforçam o compromisso dos professores, gestores e parceiros com nossas crianças”, contou.
O pai conta ainda que em casa percebeu um interesse maior dos filhos pelos elementos naturais, cena que ainda não tinha visto antes.
“Eles ficaram mais dispostos a brincar com brinquedos que não são industrializados. Curtiram muito a argila que ganharam, a peteca, e estavam buscando formas de construir seu próprio brinquedo. Isso me surpreendeu muito”, relatou.
Implantação do Pátio Naturalizado no CMEI Izaura de Queiroz como plano piloto
Para construir o Pátio Naturalizado é preciso antes de tudo compreender a linguagem das crianças, depois vem a criatividade. De acordo com a Julia, ao contrário de que se imagina, é muito simples.
“A linguagem da criança é espontaneidade, é a alegria. A linguagem da criança é o brincar, a criança brinca a todo momento com tudo o que vê, até quando ela está em silêncio, quando está parada”, diz.
Pensando no território das crianças, foi construído uma Tapiri, uma casinha livre feita de materiais improvisados como madeira, bambu e folha de açaizeiro, e uma rampa de acesso. Mais ao longo, uma ponte que estava sem uma utilidade na escola, que foi reaproveitada e posicionada ao centro do quintal, dando passagem às outras possibilidades de brincar.
Em um outro ambiente, tem mais um brinquedo inteligente, com alguns desafios feitos de cipó – que remete às raízes grandes e vazadas de pequenas árvores, com possibilidade das crianças transitarem por baixo e outras alternativas. Mais perto, um grande tronco de árvore deitado como atração para a expressão corporal.
Ao fundo da escola, foi feita uma cozinha da floresta na altura das crianças, com alguns materiais fixos como por exemplo uma madeira em forma de fogão, mesinha, e outras composições que dão a forma de uma cozinha bem criativa e artesanal. A cozinha tem materiais soltos que podem ser organizados livremente pelas crianças para brincadeiras e experimentações. Além de outros desafios estratégicos na escola que podem contribuir com o desenvolvimento motor, linguagem, social, afetivo, adaptativo e também cognitivo das crianças.
O Pátio Naturalizado foi idealizado e implementado pela equipe do Coletivo Taboa.
Os brinquedos como movimentação de renda para os artesãos benevidenses
O Sr Assis Silva, morador de Benevides, tem talento para trabalhar com madeira. Quando recebeu o convite para produzir os caixotes para as crianças, fez da melhor forma possível, e, agora, está conseguindo movimentar melhor a renda.
“Eu sempre gostei de trabalhar com o palete, sempre gostei de criar coisas. Depois que eu produzi os caixotes para essas crianças, todo mundo gostou, e eu já recebi várias encomendas. Estou muito feliz, só de ver as crianças felizes brincando, já valeu a pena”, disse o marceneiro.
O resultado da experiência com as crianças
Durante as experiências, as crianças fizeram múltiplas descobertas e pesquisas. O resultado da pesquisa feita pelos professores é que algumas crianças não tinham uma aproximação com a natureza pela maneira como reagiam a certas texturas dos elementos, outras que também tiveram o primeiro contato porém conseguiram interagir depois de um tempo, mas para outras crianças a interação aconteceu naturalmente, faziam misturas, usavam urucum como tinta, batiam os elementos dentro de um pequeno pilão, faziam comidinhas com folhas e flores, e outras experimentações da imaginação.
A pesquisa também mostrou e comprovou que as crianças também se interessam e se divertem com brinquedos não estruturados e não-industrializados, como os brinquedos de plástico, dando lugar ao que é simples e essencial.
A menina e o desejo incessante de quebrar frutos e sementes para fazer experimentos
Uma menina em uma cozinha quebrava com uma colher de pau várias sementes e frutos para retirar e usar o que tinha dentro, numa curiosidade e descoberta incessante. Ao quebrar os elementos, colocava em uma cuia e misturava tudo. Fazia isso repetidamente.
Três meninos e um tucumã
Dois meninos iniciaram uma brincadeira com um tucumã, quando se aproximou um terceiro menino, e juntos brincaram como se estivessem numa partida de futebol. A bola era o tucumã, e naquele momento era o tucumã mais importante do mundo para eles.
Dois bebês e um funil
Dois bebês sentados em uma esteira de palha brincavam com um funil de alumínio. Durante a brincadeira, as duas crianças descobriram que dava para usar como um instrumento de comunicação. Um dos bebês posicionou o funil na boca e emitiu um som que amplificou, depois deu para o outro testar. Deu certo. Os dois se divertiram.
Esses e muitos outros relatos apontaram a genialidade das crianças, e essa genialidade só precisa de um ambiente livre como um direito fundamental para que possa ser expressada.
Segundo a equipe do Coletivo Taboa, Benevides tem o potencial para ser referência no Brasil que propõe a escola como um espaço livre por uma ecologia integral e sustentável.
A experiência contou com a participação das professoras do CMEI Izaura, CMEI Berço da Liberdade, UMEI Melquíades de Lima, Jardim das Juritis, CMEI Florescer, Secretaria Municipal de Educação de Benevides e equipe Centro de Formação e Pesquisa de Benevides.
Benevides já faz parte da Rede Urban95 e da Rede Internacional de Cidades das Crianças, e vem construindo uma cidade boa para a infância e para toda a população.